Tocantinenses da Escarnnia apostam na brutalidade do death metal em um disco técnico, agressivo e muito bem executado

Desde sua criação e consolidação no início dos anos 70, o heavy metal vem incorporando elementos a sua sonoridade original, criando inúmeras vertentes musicais, cada uma com suas características e públicos próprios. Nos anos 80 o gênero se popularizou cada vez mais com bandas outrora marginalizadas agora lotando estádios e saindo do underground. Nessa mesma década, muitas bandas sedentas por mais e mais peso em suas composições, começaram a praticar um som cada vez mais sujo e agressivo, dando origem aos gêneros mais extremos da música pesada, tais como o thrash, o death e o black metal de bandas como Metallica, Venom, Possessed e Bathory. 

No Brasil, a primeira banda a ganhar notoriedade e reconhecimento internacional fazendo um som mais extremo foi o Sepultura, que na segunda metade da década de 80 tornou-se uma das maiores bandas de metal do mundo, alimentando os sonhos e a imaginação de inúmeras bandas mais pesadas que se escondiam em garagens ou tocavam para públicos minúsculos em casas de shows de péssima estrutura. Mais de três décadas depois do surgimento do Sepultura, o metal extremo já tem suas vertentes principais consolidadas e segue se expandindo, gerando novas bandas e originando novos subgêneros derivados ao ser mesclado com o metal melódico ou o progressivo, para citar apenas alguns exemplos.

Inspirados por muitas outras bandas extremas que vieram depois e conseguiram reconhecimento dentro e fora do país, nos recônditos mais distantes dessa imensa nação novas bandas surgem todos os dias, buscando seu lugar ao sol – ou às trevas – e tentando encontrar sua própria identidade e seu espaço dentro de um estilo musical que ainda anda às margens da sociedade. Saindo da capital tocantinense, a Escarnnia é uma dessas bandas, que aposta em uma sonoridade mesclando elementos de Thrash e especialmente de death metal, carregando as influências de grandes nomes da música extrema e tentando aos poucos incorporar sua própria marca em um som com características já bem conhecidas e definidas.

Lançado no início do ano de 2017, Humanity Isolated é o disco de estreia e até então único registro de estúdio da banda, gravado no Estúdio Lamparina em São Paulo, sob o Selo Classic Metal Records. Formado por Ismael Santana (Vocal/Guitarra), Valber Sousa (Guitarra), Natanael dos Santos (Baixo) e Samuel dos Santos (Bateria), o quarteto aposta em um death metal que busca suas influências em várias escolas do gênero, mas é também dotado de uma personalidade forte e bem definida. A qualidade da gravação do álbum é um destaque, uma vez que deixa todos os instrumentos bem nítidos e permite que a sonoridade da banda crie uma atmosfera pesada e violenta para sua música fluir com naturalidade.

“Total Death” abre o disco sem delongas e sem nenhum floreio, com uma introdução de bateria que logo é acompanhada por riffs ríspidos e tensos, pelo típico vocal gutural do gênero, por um baixo ressonante e com bases firmes acompanhando a acelerada linha de pedal duplo, mostrando uma banda que pratica um death metal muito bem executado, mas sem arriscar ou apresentar grandes novidades. O disco poderia cair no esquecimento se isso tudo não mudasse imediatamente em seguida, com pouco mais de um minuto minuto e meio de música, em que um riff à la “Coma of Souls” do Kreator desperta uma curiosidade para um som que viria a se transformar completamente no decorrer do disco. Juntando elementos do death metal mais tradicional de bandas como Cannibal Corpse, Morbid Angel Six Feet Under com outros do technical death metal de bandas como Nile e Necrophagist, mas especialmente evocando a sonoridade praticada pelo death em seus últimos trabalhos de estúdio, o que vemos aqui é uma banda séria, honesta e competente que não se preza em ser apenas um meio-termo de outras bandas, colocando sua marca nas composições e deixando claro que sabe o que quer ser, onde, apesar de carregar inúmeras influências, soa completamente honesta consigo mesma. Do trecho citado em diante a banda envereda por um emaranhado de elementos da música extrema, com inúmeras mudanças de tempo, indo do mais cadenciado a velocidade absoluta sem o menor aviso, culminando inesperadamente na segunda faixa, onde não há nem tempo para perceber a mudança, que mais parece uma quebra de riff para uma parte mais rápida da primeira música.

“Condemned to kill” é um verdadeiro petardo, que diferente da faixa anterior, começa numa velocidade estonteante e com uma energia visceral para depois cadenciar quase ao ritmo do doom metal, mostrando uma banda que não apela para a brutalidade gratuita, dando propósito a agressividade de suas canções quando ela se faz realmente necessária, criando composições inteligentes e acima da média. A bateria de Samuel dos Santos, por exemplo, quando utiliza-se da velocidade assombrosa dos pedais duplos, dá mais notoriedade para o uso desse recurso do que se ele estivesse sendo utilizado o tempo todo. As linhas de baixo e guitarra se conversam o tempo todo, criando um clima inquietante, com uma atmosfera de terror, que, reforçados pela letra perniciosa, geram um ambiente ideal para o solo fraseado e fúnebre criado por Ismael, mas executado pelos dois guitarristas. As mudanças constantes de tempo e de ambientação são a principal marca desta faixa – e talvez do disco – e mostram todo o entrosamento dos músicos, criando climas interessantes, como no caso dessa faixa, que soa como se o seu instinto agressivo conversasse com sua razão, discutindo em tons paranoicos a razoabilidade de seus atos.

Na sequência, “Eternal Hatred” carrega um clima bastante arrastado, com riffs encorpados que constroem a composição sem pressa. A música passa por um riff imponente que funciona como uma liga metálica, conectando todas as diferentes e tão distintas partes da canção, do trecho mais quebrado mais ao meio, quase progressivo, ao trecho mais agressivo e apressado ao final. Os vocais de Ismael Santana, apesar de guturais, apresentam uma preocupação em se fazerem compreendidos, fazendo com que as letras, apesar de não fugir muito aos padrões mais comuns do gênero, recebam uma interpretação interessante, indo de momentos à la Chris Barnes à outros mais rasgados muito próximos de Chuck Schuldiner.

“Rotten Spirit” retoma o clima acelerado de “Condemned To Kill” e deixa escancaradas as influências do death, em um som quebrado, complexo e muito bem elaborado. A música é uma verdadeira colcha de retalhos, no melhor sentido da expressão, onde cada trecho é quase uma música a parte, com suas particularidades e peculiaridades, por vezes até colocando um pé no progressivo, outras no thrash. A quantidade de riffs das mais diferentes características e velocidades incorporados à canção, faz juz ao que o Metallica fez em “The Thing That Should Not Be”, desfilando um verdadeiro repertório de riffs em uma única música, que muitas bandas teriam utilizado para um disco quase completo. Essas partes distintas, porém, se repetem sempre na mesma ordem, tornando a canção menos surpreendente do que poderia ter sido se as atmosferas desenvolvidas na música trocassem de ordem ao alternar de um contexto ao outro. O solo é de muito bom gosto, melodioso e melancólico, onde a cozinha não se esconde, mas é generosa em deixar a guitarra tomar seu devido protagonismo. Ainda assim, o destaque da faixa fica para o trabalho variado e para a técnica apurada do baterista Samuel dos Santos, que vai da velocidade extrema do pedal duplo a momentos onde explora todo seu kit de bateria em tempos quebrados e complexos, na escola do que o genial Amilcar Christófaro, do Torture Squad, fez em discos como o Hellbound e o Asylum of Shadows.

A faixa-título começa em um ritmo marcial, com um riff palhetado e uma densa linha de baixo paralela a guitarra, seguidos por uma interpretação vocal agressiva e totalmente inteligível, apesar dos guturais e rasgados de Ismael Santana. Quando a bateria quebra o ritmo para marcar tempo no ride e na caixa, o thrash toma conta e convida o ouvinte a bater cabeça. Nesse ponto do álbum já é possível observar que os músicos não pouparam recursos para deixar suas composições mais ricas, desfilando todo seu repertório em cada canção e não se intimidando para a complexidade e a capacidade de cada música carregar dentro de si ideias que poderiam ser desmembradas em várias outras composições mais simples, porém menos interessantes. Dizemos isso pois é possível notar em cada faixa do disco um sem número de influências da banda condensados em um som que ainda consegue ter sua própria identidade, demonstrando uma maturidade e uma segurança acima da média para músicos tão jovens. Mal terminamos de falar isso e o baixo de Natanael dos Santos conduz a música para outro direcionamento completamente oposto, em que (por volta do minuto 1:55) a banda busca tantas referências em alguns poucos segundos, lembrando os trechos iniciais de canções como “My Friend of Misery”, “South of Heaven” e “Dead Skin Mask”, que faz você duvidar de tudo que eles colocaram em uma música de apenas 3 minutos e 45 segundos.

Uma característica muito legal desse álbum é como as transições de uma música para a outra ocorrem de maneira muito natural, onde muitas vezes o ouvinte nem percebe a troca de faixa, fazendo o disco parecer uma unidade totalmente interligada, como se fosse um grande quebra-cabeças que foi montado com as peças fora de lugar, mas que ficou ainda melhor do que algo correto e “quadrado”. Isso pode ser observado em “A Moment of Compassion”, que surge subitamente em meio às batidas finais de “Humanity Isolated”, com seu riff que consegue ser ao mesmo tempo maligno, soturno e cativante, mostrando que a

banda não se limita ao gênero musical que se propôs, buscando no doom alguns recursos que desejava para dar o clima inicial da canção. Não se trata necessariamente da melhor música do disco, mas nessa faixa a banda toda chega a uma espécie de ápice coletivo. As guitarras de Valber e Ismael desfilam riffs, riffs com “paradinhas”, melodias e solos de muito bom gosto, demonstrando uma sagacidade muito apurada e uma capacidade criativa muito bem explorada para um gênero tão comumente associado a agressividade despropositada, basta observar os inúmeros climas que os músicos criam em uma única canção. O baixo de Natanael vem desde o início da música com fraseados refinados, ornamentando com uma beleza sombria as linhas arrastadas das guitarras e se fazendo destaque em todo o decorrer da música, não apenas como base, mas como corpo da composição e muitas vezes – assim como em todo o disco – como protagonista, com intervenções precisas e muito bem elaboradas nas quatro cordas. A bateria sempre precisa e intrincada de Samuel segue variada e competente, sabendo ser mais direta quando necessário, mas sabendo especialmente de sua importância na construção musical da banda, ditando cada mudança de ritmo e cada direcionamento que a banda irá tomar. Por fim, o vocal de Ismael chega a seu momento mais alto do disco, vociferando em uma interpretação soberba, mais furioso e agressivo do que nunca, ficando em um meio termo entre o rasgado e o gutural, clamando colericamente por “um momento de compaixão para salvá-lo desta agonia”.

“The Evil Spell” começa conduzida por uma cozinha arrastada e bem reta, com um clima que, para quem já entendeu a proposta da banda, antecipa uma mudança imediata, que chega logo em seguida no formato de um riff no melhor estilo Slayer, seguido de uma clima totalmente death dos discos Symbolic e The Sound of Perseverance. A música segue uma fórmula bastante semelhante às anteriores, criando vários climas distintos, mas desta vez inserindo alguns novos elementos, como no momento em que a banda toda pára para um excelente dedilhar do baixo de Natanael à la Steve Harris em “Phantom of the Opera”, que trás consigo por alguns instantes todo aquele clima nostálgico da NWOBHM, que se estende pelo solo, antes de retomar o clima inicial da música novamente. Uma música carregada de influências, mas que souberam ser condensadas em um som bem lapidado e ainda assim original.

Em “Suicidal Beliefs” a fórmula já bem compreendida começa a se repetir um pouco e poderia começar a se tornar cansativa se a banda não apresentasse sempre alguma coisa nova, como nesse caso, onde podemos perceber algumas nuances de black metal na sonoridade, criando um clima bastante sombrio e profundo, além de alguns duetos de guitarras com melodias bastante interessantes e que ficam rapidamente na cabeça, a mesma coisa se aplica em “Suffering and Desolated”, com seus elementos de heavy e death tradicionais e um solo belíssimo, cheio de camadas, bastante melodioso e bem construído – muito provavelmente o melhor do disco.

“Back in Time” fecha o disco começando numa vibe “Spirit Crusher” e mantendo o baixista Natanael como destaque no decorrer de toda a música, galopante e ruidoso, com uma força assombrosa e se fazendo notável em meio a riffs serrilhados e uma bateria acelerada, voltando a conduzir a música sozinho em seu encerramento, em uma faixa bem mais direta, fechando o álbum da mesma maneira que começou, como que se a primeira e a última

músicas fossem uma espécie de invólucro mais sólido para um conteúdo mais volúvel do restante do disco.

Humanity Isolated é um bom disco de estreia, de uma banda corajosa e madura, com técnica e muita criatividade, que criou uma fórmula concisa e com bastante identidade, sabendo buscar conteúdo em suas influências, mas se permitindo ser mais do que isso. Deve haver uma preocupação em lançamentos futuros para que essa fórmula não se torne uma zona de conforto, afinal, não é por que a banda preenche suas músicas com inúmeros e variados elementos que sua música não possa soar cansativa se não se arriscar, mas definitivamente esse é um dos grandes registros do Death Metal brasileiro dos últimos anos e merece uma atenção maior pelo menos em seu país de origem, onde tantas bandas boas não recebem o tratamento e o reconhecimento por seus esforços e bons trabalhos.

Um possível segundo disco da Escarnnia deve ser definidor em todos esses sentidos, interna e externamente à banda e certamente o aguardamos com boas expectativas e curiosos sobre os rumos que serão tomados e a capacidade da banda de se reinventar sendo ela mesma.

Nota Luis Fernando: 8,3
Nota Leandro: 8,0

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