Velejando em seus dracares pelos mares medievais do velho continente, os vikings não se importavam com fronteiras físicas ou com o que os mapas dos nobres tentavam delimitar como território de uma nação ou outra. Eles se espalhavam em sua jornada sanguinária, guerreando com selvageria e pilhando tudo que poderiam carregar. Suas explorações limitaram-se especialmente às regiões da Europa, mas sua cultura, costumes e lendas se espalham por todo o mundo até os dias de hoje, sendo amplamente explorada como tema de livros, séries, filmes e músicas. No heavy metal não só a cultura Viking, mas também a dos celtas e dos pagãos teve influência direta no surgimento das vertentes mais folclóricas e fantasiosas do gênero, como o folk e o viking metal.
Em um país como o Brasil, de dimensões colossais e de um povo miscigenado, com heranças culturais de todos os cantos do mundo, essa mistura é inevitável e forja uma nação culturalmente muito rica nas tradições, nos costumes, nas histórias contadas e nas mais diversas formas de arte. O clima essencialmente tropical da maior parte do nosso país nunca impediu que bandas vindas dos cantos mais gélidos e remotos do planeta fizessem uma base sólida de fãs devotos de sua música e de seus costumes por terras tupiniquins. Herdeiros honorários das riquíssimas culturas nórdicas e célticas, provindos das regiões mais frias do Brasil, os curitibanos da Tandra surgem como mais um representante de peso para um gênero que ganha cada vez mais espaço e adeptos entre os apreciadores da música pesada e de uma generosa caneca de cerveja ou hidromel.
Para quem associa a música folk unicamente as melodias dançantes do bandolim, ao serrar enviesado do violino e ao assobiar saltitante de uma flauta, deverá saber que ao mesclar-se com a impetuosidade da cultura viking e com o peso do heavy metal, o som é abastecido com doses cavalares de uma energia bruta e rústica, de guerreiros acostumados a caírem diante de alguns barris de cerveja, mas jamais diante de seus inimigos.
Fundada em meados de 2013, mas com sua formação consolidada apenas em 2017, a Tandra veio a público primeiramente através de seus singles para “Open the Bar” e “Time And Eternity”, esse último tendo obtido grande repercussão, atingindo mais de 200 mil reproduções no Spotify (marca que viria a ser superada mais tarde pelos mais de 400 mil de “Marching to Infinity”). Com passagens por diversos festivais, dividindo palco com grandes nomes do cenário nacional como Angra, Krisiun e Tuatha de Danann, a banda foi construindo sua imagem e ganhando maturidade para o lançamento de seu primeiro disco de estúdio.
Gravado no Beco Estúdio por Ivan Pellicciotti e lançado digitalmente em 18 de outubro de 2019 – e mais tarde também em formato físico -, Time and Eternity nos apresenta a uma banda altamente competente e com a ousadia de navegar por águas poucas vezes exploradas em território nacional, singrando por um mar de águas caudalosas, alimentado por diversos mananciais que nele desaguam suas influências desde o Folk Metal mais tradicional de bandas como Ensiferum, Korpiklaani e Skyclad, até aquele que flerta com a música mais extrema de bandas como Finntroll, Eluveitie e Borknagar.
O disco conta em seu line-up com Felipe Franco no baixo e nos vocais, Christopher Knop e Geferson Franco nas guitarras e vocais, Felipe Ribeiro na flauta e vocais, Max Waltrick na bateria e percussão e Carlos Linzmeyer no acordeon. A participações especiais ficaram por conta de Gabriel Mitsuo Inage no hurdy gurdy e de Andy Coutinho e Lucas Rafalski nos backing vocals. A arte da capa ficou a cargo de Ewan Donnovan, o design interno do encarte por Max Waltick e as fotos por EstelaZ Fotografia.
A imprescindível introdução “The Summoning to the New Age” prende a atenção imediatamente, transportando o ouvinte absorto para dentro da experiência do disco, fazendo-o sentir-se em barcos apinhados de guerreiros avistando seu destino após incontáveis dias de incertezas sob um sol escaldante e tempestades furiosas. As melodias balançam plácidas na ondulação do mar e sob a brisa reconfortante do vento que conduzem o ouvinte diretamente para o campo de batalha de “Thunder’s Calling”. A entrada da banda prenuncia o fim da calmaria e soa, como o título sugere, como o chamado de um guerreiro em preparação para seu destino iminente, que logo em seguida parte para sua jornada épica de batalhas, sangue, ouro e glória, conduzido pela seção rítmica galopante de Felipe Franco e Max Waltrick, pelas melodias aceleradas do acordeon de Carlos Linzmeyer e da flauta de Felipe Ribeiro e pelos riffs imponentes de Christopher Knop e Geferson Franco. Os vocais alternados entre Felipe Franco, Felipe Ribeiro, Christopher e Geferson permitem uma interpretação riquíssima, quase cênica, indo dos guturais mais abertos aos mais graves e dos vocais mais limpos aos drives, sempre acompanhados de backing vocals e coros grandiosos. Riffs proeminentes e robustos fazem a ponte para os excelentes solos de guitarra – provavelmente os melhores do disco – carregados de fúria e impetuosidade, mas também de um feeling que transborda a cada nota. Os brados de “Thunder’s Calling”, que a cada vez que se repetem recebem uma dose extra de peso, culminam na selvageria impiedosa que encerra a canção, criando boas expectativas sobre o que virá pela frente.
A faixa que carrega o nome do disco inicia com belas melodias e uma evolução muito bem construída, com influências notórias da clássica “Lai Lai Hei”, do Ensiferum. A medida que a música cresce, vai ganhando peso progressivamente, até ser dilacerada por um riff tempestuoso das guitarras de sete cordas e urros exasperados que antecipam uma mudança completa de ritmo, flertando com o black metal e o melodic death metal, especialmente nos riffs lancinantes das guitarras. As nuances vocais são um show a parte, permitindo expressar todos os sentimentos com a teatralidade que cada passagem da canção deseja transmitir, contando a história de um povo e sua luta pela eternidade. A coletividade da canção é outra de suas marcas, havendo espaço para todos brilharem coletiva e individualmente. A bateria contundente e variada e o baixo pulsante ditam o ritmo e todas as mudanças constantes de andamento, as guitarras vão de passagens complexas, taciturnas e sofisticadas, indo até os solos carregados de emoção e beleza. Os arranjos e acordeon e flauta esgueirando-se ao meio da música dão a ela uma beleza épica, interpondo as guitarras, concedendo uma quebra ao peso constante da canção e mostrando logo de cara a importância de todos os músicos para a plenitude da obra da banda.
A primeira música criada pela banda, “Open the Bar” começa com seu acordeon e baixo saltitantes e mostra uma banda que ainda buscava sua identidade e que invariavelmente carrega influências daqueles que vieram antes, com sua inevitável canção em louvor aos prazeres do álcool e de uma boa festa, indo buscar inspiração em “Keelhaueled” do Alestorm e outros mestres das músicas dançantes como Korpiklaani e Trollfest. Apesar do peso imperativo, a canção é um convite declarado à dança, de pés batendo no chão, braços calorosos e corpos suados se cruzando aos pulos e canecas cheias de cerveja derramando em brindes desajeitados, aos brados de “Open the bar, Open the bar”, a serem obviamente entoados a plenos pulmões nas apresentações ao vivo da banda. Um verdadeiro presente da Tandra a seu público.
O lamento do acordeon de Carlos Linzmeyer e da flauta de Felipe Ribeiro qual crocitar de um corvo de asa quebrada, criam um ambiente desolador para a entrada da banda em um clima denso e melancólico como a neblina do inverno. “Marching to Infinity” é detentora do título de faixa mais popular da banda nos serviços de streaming, tendo sido reproduzida 409 mil vezes no Spotify no momento em que essa resenha é escrita, dando à banda uma visibilidade digna de grandes nomes do gênero, espalhando a música do sexteto curitibano pelo mundo, sendo ouvida especialmente em países como Alemanha, Estados Unidos, França, Suécia, Canadá, Polônia, Brasil e Rússia. A escolha da banda pela faixa que carregaria a bandeira da Tandra pelos quatro cantos do planeta se mostra acertada, uma vez que “Marching” abrange todos os elementos que compõe o disco e por se tratar da faixa com maior personalidade, devendo servir como base para a consolidação da identidade da banda no desenrolar de sua carreira. A canção consegue equilibrar as mais belas melodias às passagens mais extremas, indo em questão de segundos dos blast beats impiedosos Max Waltrick e do roncar furioso do baixo de Felipe Franco, ao sussurrar cristalino da flauta e aos duetos lamuriosos das guitarras de Christopher Knop e Geferson Franco.
“The Forest Dance” repete a fórmula festiva de “Open the Bar”, numa ode a fauna e a flora e em um brinde à vida, ao ritmo ora dançante da polka e da giga, ora vertiginoso e empolgante do Death/Folk Metal em um convite a “Humanos e animais dançando em sincronia com a floresta”. O balanço inquieto do baixo e os riffs mais diretos acertam de mão cheia, demonstrando que não são necessárias linhas absurdamente elaboradas para se criar uma bela e empolgante composição. As interpretações de cada passagem, como que cantada por personagens distintos, remetem à uma aventura de RPG em meio a floresta. Sua temática faz lembrar a celebração solene de “Tan Pinga Ra Tan” do Tuatha de Danann, mas sem a roupagem de balada dos bardos mineiros.
A passagem soturna da instrumental “Last War Sacrifice” e seus coros ritualísticos de um sacrifício clamando pelo suporte dos deuses em uma batalha iminente, fazem o prelúdio perfeito para a épica “Winter Days”, a música mais longa e naturalmente a mais completa e complexa do álbum, com instrumentais que ainda não haviam sido explorados no disco e outros que passam a limpo o que ouvimos até aqui, além da mais profunda e bela abordagem lírica do álbum, relatando a epopeia de um povo em preservar suas crenças, ideais e sua cultura, com uma letra que pode ser claramente interpretada em um contexto completamente atual. A primeira parte murmura melodias de uma beleza sutil, onde o acordeon e a flauta de Carlos Linzmeyer e Felipe Ribeiro, enriquecidos pela participação de Gabriel Inague no hurdy hurdy (ou viela de roda), criam uma atmosfera requintada em um contraponto charmoso e orgânico ao extremismo instrumental do restante da banda, que surge logo em seguida, primeiramente numa passagem tipicamente Folk, muito pesada mas bastante melódica, com fraseados e intervenções belíssimas das guitarras de Christopher Knop e Geferson Franco, indo aos guturais e ao baixo coléricos de Felipe Franco e longas partes instrumentais. O retumbar dos tambores e das melodias tênues criam uma ponte episódica para o desfecho da canção, que mescla elementos de bandas como Amon Amarth e Eluveitie, mas em muitos momentos vai até o Black Metal buscar recursos para deixar a música ainda mais agressiva e excruciante, como nos urros agonizantes e desesperadores que suplicam aos deuses “Ela morreu agora. Com honra, Com coragem, Com sangue e suor. Mas viverá amanhã para ser lembrada para sempre”.
A derradeira e instrumental “Tears of Sorrow” encerra o álbum melancólico em uma despedida de emoção palpável, como um último sacrifício, escorrendo melodias em lágrimas, como se a banda quisesse que suas canções continuassem marchando rumo ao infinito pelo tempo e pela eternidade, convocando seu próximo álbum à uma nova era, como o chamado do trovão que trás dias de inverno, nos convidando novamente a dançar saltitantes com a floresta e clamar pela abertura do bar para mais uma rodada de cervejas e grandes canções. Um brinde e vida longa à música da Tandra.
Nota Luis Fernando: 8,8
Nota Leandro: 8,9