Ouvimos “Roxo” com exclusividade, o primeiro da Filhos da Ciça, e deixamos aqui as nossas impressões a respeito deste belíssimo lançamento que ocorre no dia 18 de Agosto de 2022
“A cor Roxa está vinculada diretamente ao mundo místico e significa especialmente espiritualidade, magia e mistério, transmitindo uma sensação de melancolia e introspecção, mas que estimula o contato com um aspecto espiritual, proporcionando a purificação do corpo e da mente, e a libertação de medos e outras inquietações”.
É assim que a cor roxa é descrita pelo dicionário de significados da internet, mas em “Roxo”, o primeiro álbum completo de estúdio da banda Filhos da Ciça, essa sinestesia com a música é muito mais profunda e abrangente, apesar de carregar toda essa mística púrpura.
O convite a participar dessa viagem hipnotizante e imersiva criada em “Roxo” pelas mãos talentosas de Zé Roberto Barbosa (guitarra e voz), Robson Soares (baixo e voz) e Guilherme Sala (bateria), acontece logo de imediato, na introdução do álbum, que emana sons dissonantes e etéreos instigando o ouvinte a se desligar do mundo ao redor e mergulhar por completo na imensidão de “Roxo”. Combinando distorções, melodias, percussões e recortes da canção “Cartomante”, de Ivan Lins, interpretada por Elis Regina, o álbum se entrega de bandeja para uma viagem de sonoridades e palavras implícitas e explícitas.
Logo de imediato, temos a canção “Cartomante”, não a de Ivan Lins, desta vez a canção original da Filhos da Ciça, já lançada antes do álbum como single e videoclipe, que faz referência a um conto de Machado de Assis e que funciona como um divisor de águas do que a banda fez até aqui e do que provavelmente fará daqui pra frente. O amadurecimento da sensibilidade artística dos músicos é evidente, e tudo que já havíamos ouvido a respeito da sonoridade do EP “Quero Fugir”, de 2019, aqui adquire uma nova perspectiva, fazendo deste o trabalho que melhor define onde a Filhos da Ciça pode chegar.
“Cartomante” é provocante e indecorosa, com uma sonoridade orgânica e profundamente verdadeira, que se apega mais ao seu propósito artístico do que às práticas engessadas na criação de uma música. “Servidão”, por sua vez, é toda suingue e groove, misturando elementos do Funk Rock com o Rock Alternativo, mesmo ao destilar palavras ácidas com aspereza, criando uma evolução interessantíssima, que vai ganhando cada vez mais cadência e profundidade à medida que o peso e o amargor do entendimento dos hematomas aqui denunciados vão tomando forma.
No trecho onde é recitado o poema do músico, compositor e escritor, André Gatti Ariga, a canção chega até mesmo a flertar com a musicalidade e a poesia de Criolo, em “Ainda Há Tempo”, num vórtice delirante de vozes e sensações.
Em “A Chuva” já podemos perceber que a banda não se prende às amarras de um rótulo musical, se permitindo utilizar de toda sua capacidade e recursos artísticos para expressar sua obra da maneira mais verdadeira e completa possível. Em sua introdução podemos observar recortes de canções com temática de chuva de artistas como The Beatles, The Doors, Jorge Ben, Toquinho e Luiz Gonzaga, remetendo ao experimentalismo de “Sgt. Peppers”, dos Beatles.
“A Chuva” se constrói sem pressa, dando o tempo necessário para que todos os elementos sejam inseridos e maturados com protagonismo e sensibilidade, tornando essa a canção mais longa, mas também a mais profunda e reflexiva do álbum. Os sentimentos são quase palpáveis e é praticamente impossível passar apático à toda a dor transmitida pela grandiosa interpretação de Robson Soares e as nuances instrumentais que chegam mesmo a flertar com o Blues e o Heavy Metal.
“Me cansei” soa como uma continuação natural para sua antecessora, mesmo que seguindo um caminho completamente diferente. Se em “A Chuva” a sensação era de aprisionamento e melancolia, em “Me cansei” a sensação de liberdade e redenção é inevitável. A referência musical aqui fica de alguma forma em algo como o que o Red Hot Chili Peppers fez em “One Hot Minute”.
Os fraseados do baixo de Robson, a combinação dos vocais de Zé e Robson, os riffs e melodias cativantes de Zé Roberto e as linhas expressivas de bateria de Guilherme mostram a força coletiva da Filhos da Ciça, que atua como uma unidade, onde cada parte da engrenagem é fundamental para o funcionamento do todo. Todo o senso artístico e as influências absolutamente distintas dos músicos se fundem como algo indissolúvel, fazendo da música da Filhos da Ciça um completo deleite em todos os seus mais variados aspectos, o que se faz ainda mais evidente na canção seguinte.
“Lembro”, com toda sua mansidão e brandura, carrega algumas das mais belas passagens do disco e, especialmente, o melhor solo de guitarra do álbum, remetendo a genialidade de David Gilmour, guardadas as devidas proporções. “Lembro” é absolutamente contemplativa e merece ser sentida, não apenas ouvida.
O álbum encerra com o Funk Rock de “Messias e os Apóstolos do Funk”, com sua crítica perspicaz e desinibida ao conservadorismo, que apesar da aspereza de suas palavras, ao se fazer alegoria, transforma-se numa composição divertidíssima e contagiante, absolutamente convidativa no seu chamado ao “baile do Messias”. Vale destacar que na introdução desta faixa, Robson interpretou as vozes da peça “Dona Nobis Pacem” (Nos Conceda Paz), que é cânone musical retirado da oração Agnus Dei, da missa católica latina, de autor desconhecido.
O disco acaba de uma maneira completamente distinta à maneira como iniciou, passando por diversas vibes e abraçando uma diversidade musical estonteante, e talvez nisso habite sua principal virtude, pois mesmo que haja uma identidade musical bem clara e definida em “Roxo”, a banda não se impõe nenhum limite ao se permitir manifestar sua arte em sua plenitude.
E assim ficamos, esperando pela próxima Cor, e levando “Roxo” em consideração, podemos tanto ir para a caliência do Vermelho, como para a ternura do Azul. É praticamente impossível prever onde a Filhos da Ciça irá nos levar, só sabemos que queremos estar lá.
Faixas:
01 – Prelúdio
02 – Cartomante
03 – Servidão
04 – A Chuva
05 – Me Cansei
06 – Lembro
07 – Messias e os Apóstolos do Funk
“Roxo” é uma produção do Studio Maestrya, com gravações, mixagem e masterização por Marco Dower, com preparação vocal por Will Anselmo. A capa do álbum é de autoria de Guilherme Sala e Maria Eduarda Suguimoto.
Enquanto “Roxo” não chega, ouça as demais canções da Filhos da Ciça aqui:
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